domingo, 3 de maio de 2015

Crónicas do Vento Salgado


Tirei a senha de atendimento e fiz as contas: a lista de espera era de 38 pessoas. Hesitei. Desesperei. Sabia que não podia virar costas e ir-me embora, tinha mesmo de esperar para ser atendida. A sala abarrotava de gente tristonha, ensimesmada, conformada até... O ar era irrespirável, abafado, cheirava a roupa molhada, a chuva e a mofo. Ouvia-se tossir, o choro impaciente de crianças, de vez em quando rasgado pela voz dura e metálica dos funcionários ao balcão... Não havia um único lugar sentado e as pessoas encostavam-se às paredes, de olhar vazio. Olhei o relógio, calculei mentalmente o tempo de espera e decidi sair, esperar lá fora, à chuva, com o vento a bater-me no rosto. 
Ela estava junto à porta, cosida com o vidro, embrulhada num xaile de lã cinzento que fazia cruz no peito e se prendia com uma laçada sobre os rins. Era velha, muito velha. Tinha o rosto e o cabelo molhados pela chuva miudinha atirada pelo vento frio, as mãos enrugadíssimas seguravam um molhe de rosas brancas, tristes e já a desfolhar... Ela olhou-me e sorriu ao ver que eu ficava parada junto à porta: Leva rosinhas, amor. Leva que são baratinhas, são as últimas, faço-te um desconto...! Que idade teria? Olhei-a com atenção e reparei nos olhos azuis, tão azuis...!, no avental desbotado, nas meias de lã velhas e gastas, no sorriso com poucos dentes... A seus pés, jaziam mais dois molhos de rosas entristecidas e com ar selvagem... E ela continuava a cantilena, o pregão, impingindo-me as últimas rosas que lhe dariam o direito de regressar a casa: Compra linda, amanhã é o dia da mãe, ela vai gostar...!  Já só tenho estas e as mães gostam de rosas brancas! Sorri-lhe e expliquei-lhe que não podia dar flores à mamã, o gato cisma com elas, come-as todas, derruba as jarras e ela enerva-se muito... Calou-se, desconsolada. Leva-as para ti amor, tens filhos? - tentou sem se render. Sim, falei-lhe dos meus filhos. E ela falou-me da mãe morta há mais de quarenta anos - Não há dia nenhum que não chore pela minha mãezinha! - dos filhos que não teve e do homem que a deixou. Falou-me das rosas e dos legumes que tem no quintal - Eu não ando a pedir menina, eu ganho o meu dinheiro! -  da chuva e do vento que lhe partiu tudo, da bicicleta com o pneu furado que a tinha obrigado a vir a pé, da vida que vivia sozinha - Enterrei a minha família toda, já só falto eu... Não sei quem me vai enterrar a mim... E dentro do meu peito nasceu uma tristeza infinita porque no meu país há velhos a sobreviver nas ruas à chuva, que vivem sozinhos em casas vazias, desprotegidos, à mercê deles mesmos... Velhos que morrem sozinhos, desamparados, e ninguém dá pela falta deles até que o cheiro dos cadáveres denuncia a morte aos vizinhos... Leva amor, são as últimas... As flores estavam feias e ela pedia uma ninharia por elas... Estendi-lhe uma nota e vi o desalento: Não tenho troco, amor... Não fazia mal, ficava assim, era para ela tomar um leite quente, comer qualquer coisa e ir de autocarro para casa - Ainda mais azuis, os olhos brilharam: Obrigada amor, a mãezinha vai gostar, vais ver, agora só se dá perfumes e jóias, é um disparate! - As mães gostam é de rosas!!! 
Deixei as rosas no jazigo da minha avó. Ela não se importaria por estarem velhas e desfolhadas... Também ela - eu sei - teria ficado com um nó no peito se conhecesse aquela velhinha que há quarenta anos chora pela mãe, que neste domingo não tem a quem abraçar, e no meio do silêncio em que vive, nunca ouviu nem ouvirá ninguém dizer-lhe que é a melhor mãe do mundo.

4 comentários:

Majo disse...

~
~~~ Belíssima narrativa, Anna!

~~ É tão raro termos oportunidade de reparar nestas vidas tristes e solitárias.

~~ É uma benção ter a oportunidade de fazer algo para dar, pelo menos,
o consolo de um sorriso feliz, ainda que efémero.

~~~ Abraço amigo, desejando que surja uma agradável semana de sol. ~~~
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Anna disse...

Obrigada, Majo :)
Sim... que o sol não se demore...

Abraço

Anónimo disse...

Anna, eu sei que já lhe disse que gosto de Si. Só já não me lembro é alguma vez lhe disse que gosto muito de Si...

A visita ao seu blog faz-me sentir menino e despir a mascara de adulto...mas é tão bom...

(não vale chamar-me maricas...)

;)

Anna disse...

Caríssimo...
Não, ainda não tinha dito que era "muito"... É que isso muda tudo, sabe?

Beijo