terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

In Memoriam


Se fosse vivo, hoje David Mourão-Ferreira faria 88 anos. "O meu David", como eu gosto de lhe chamar. Descobri-o sozinha, quase adolescente, nas tardes solitárias em que a estante do avô estava por minha conta e eu podia ir buscar uma cadeira e subir à prateleira de cima, onde longe dos olhares e das mãos dos netos o meu avô escondia, numa fila de trás, os livros que achava que ainda não eram para a nossa idade. Atraiu-me a capa e o título - A Arte de Amar. Li muitos poemas às escondidas e fascinou-me aquilo que ainda desconhecia na altura: tinha encontrado a Poesia; tinha conhecido o Poeta. Semanas mais tarde, o avô apanhou-me com o livro na mão e não se zangou... Disse-me só que eu ainda teria que ler muitos livros para perceber aquele... E eu li. Li todos os do David Mourão-Ferreira que existiam na estante. Estava apaixonada por aquele homem de sorriso misterioso e olhar magnético que me fitava na badana do livro; estava apaixonada pela elegância da escrita, pela beleza das palavras. Passei a seguir o programa de televisão que ele tinha na altura e apesar de perceber muito pouco do que era dito, não tirava os olhos daquela figura que me tinha despertado para a Poesia.
Gosto de tudo o que David Mourão-Ferreira escreveu. Li tudo o que havia para ler sobre ele e adorei ter escrito a minha dissertação de Mestrado sobre O Amor e o Erotismo na sua obra. O país esqueceu-o mas eu não permito que ele seja esquecido: falo dele aos meus alunos, leio-lhes poemas de quando em vez, sempre que vem a propósito refiro-o como uma das maiores personalidades literárias do século XX. Canto-lhes o "Barco Negro" que ele escreveu para a Amália. E aconselho-lhes a leitura da sua obra, um maravilhoso hino à Mulher e ao Amor.
Dizem que os poetas não morrem... Talvez seja verdade e por isso, hoje apetece-me recordar um dos poemas mais belos que ele escreveu para Fado. Um poema imortal, como o Poeta que o escreveu.


Era uma noite apressada
depois de um dia tão lento.
Era uma rosa encarnada
aberta nesse momento.
Era uma boca fechada
sob a mordaça de um lenço.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!

Imensa, a casa perdida
no meio do vendaval;
imensa, a linha da vida
no seu desenho mortal;
imensa, na despedida,
a certeza do final.

Era uma haste inclinada
sob o capricho do vento.
Era a minh'alma, dobrada,
dentro do teu pensamento.
Era uma igreja assaltada,
mas que cheirava a incenso.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!

Imensa, a luz proibida
no centro da catedral;
imensa, a voz diluída
além do bem e do mal;
imensa, por toda a vida,
uma descrença total!

David Mourão-Ferreira, in À Guitarra e à Viola

14 comentários:

Anónimo disse...

Hoje, Stora, para que não me sinta como uma criança a intrometer-se em assuntos de adultos, deixo-lhe apenas um sorriso tímido, face à consciência da minha pequenez perante o "David" e a "Anna".

;)

PS: O sorriso pode até não ter a beleza da poesia do "David", mas é igualmente genuíno.;)

Anónimo disse...

Não conhecia o David. Agradeço por apresenta-lo. Grande tudo o que ainda temos a conhecer, e imenso o que acreditamos nunca ter por completo.

Mar Arável disse...

O nosso David sempre

Anna disse...

Obrigada Caríssimo, pela discrição e pela genuinidade do sorriso.
É sempre benvindo a este espaço...!

:)

Anna disse...

Concordo consigo, caro Anónimo. Infinito é o desconhecido, tão pouco ou nada, o que nos pertence...

Anna disse...

Está bem, eu aceito o pronome possessivo no plural... :)

Abraço, Eufrázio :)

Lídia Borges disse...


Ainda que tenhas declaro que aceitas o pronome no plural, eu nem lhe toco perto de ti. :) E escondo o tanto que, não a sedução do cachimbo do David Mourão-Ferreira, mas a sua relação [de pele] com a palavra, que me encanta.


"Nos agudos cristais do cilício da ausência,
em silêncio rebenta, em silêncio, o teu rosto..."

David Mourão-Ferreira, Obra Poética (1948-1988), Presença, p. 92

Bj.

Anna disse...

Todo sedução, o meu David...!
Ótima escolha, Lídia :)

Beijo.

Manuel Veiga disse...

um "senhor Poeta"...

beijo

Anna disse...

Mesmo, Herético :)

Um beijo.

Anónimo disse...

Pelo que leio aqui, poste e respetivos comentários, nunca o significado que atribuem ao nome David fez tanto sentido.
David - "aquele que é amado", "querido", "predileto"...

Anna disse...

Ainda bem que o meu amor pelas palavras de Mourão-Ferreira transparece naquilo que vou dizendo por aqui... É uma justíssima homenagem :)

AC disse...

Anna,
Aprecio a força da sua convicção e, acima de tudo, os gestos com que a vai alimentando.

Um beijinho :)

Anna disse...

Obrigada, AC :)

Beijo